terça-feira, 14 de outubro de 2014

Felicidade, o que diagnosticar?

Minha comunicação será centrada na discussão das diferentes perspectivas que o verbo diagnosticar evoca, e a sua relação com o conceito de felicidade na modernidade e contemporaneidade. Destaco três pensadores: Nietzsche, Freud e Foucault, que, em momentos e intensidades diferentes, ocuparam o lugar de diagnosticadores de seu tempo, avaliando sua “saúde” e seu “adoecimento’. É da modernidade e da constituição e construção do ”homem moderno” que falam estes pensadores. Produzindo cada um sua tipologia, seja como niilista reativo (aquele que nega todos os valores superiores, mas se sente fraco e incapaz de ser um criador), seja como neurótico (o que se paralisa diante do seu trauma e desamparo psíquico), seja como o normatizado/disciplinado (o que se submete aos valores das ciências humanas como produtora de verdade).

Enfim, é deste “homem” burguês, lançado à própria finitude, árbitro de seu “destino”, autônomo e livre em seu protagonismo histórico, de quem eles falam.  Parece-me, assim, que o conceito de felicidade ganha potência, relevância e redimensionamento, com a assunção deste homem/individuo moderno. Se, nestes pensadores, não encontramos uma definição positiva para o conceito de felicidade, é pelo que escapa, pelo que falta, pela incompletude, que podemos defini-la.

Talvez, para estes pensadores, o projeto moderno/humanista já tenha apontado para sua debilidade desde o início de seu traçado genealógico. Se o niilista se sabe impotente e sem forças pra criar; se admite que o homem pequeno sempre retornará; se o processo civilizatório é rigoroso na sublimação pulsional e, consequentemente, na exacerbação das neuroses; se o assujeitamento e domesticação dos corpos se dá através da coerção dos discursos de verdade das ciências humanas, não é da esperança, nem do progresso, ou da felicidade que eles nos falam.

Mas, se há uma visão crítica genealógica destes valores modernos através destes pensadores, há uma incidência ou uma impertinência destes valores na nossa existência contemporânea, seja na esperança de uma vida eterna, na imanência de corpos saudáveis, belos e renováveis, seja na expectativa na renovação permanente de bens ou num gozo possível, alcançável...

Não é estranho, ao olhar do genealogista, que toda esta demanda se traduza numa sociedade deprimida, bipolar, medicalizada, diagnosticada e patologizada. Se, até aqui, parece sombria e nada solar a perspectiva desenvolvida, e se a felicidade é um valor, dentre tantos outros, que a aurora moderna nos promete, lanço um desafio à minha própria leitura: do meu ponto de vista, como transmutar está palavra tão impregnada do ideário positivo, humanista, em resistência, próxima da alegria, no fazer estético criador. Este vai ser meu desafio ou minha ousadia?

Convido-os a aventurarem-se comigo.

Débora Abramant (Psicanalista)

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A felicidade se afere?


O reconhecimento de que o bem estar inclui como dimensão importante a felicidade motivou a Assembléia Geral das Nações Unidas a tomar uma resolução histórica em julho de 2011. Através desta resolução, os países membros deveriam tentar mensurar o índice de felicidade de seus cidadãos. Em abril de 2012, foi realizada a primeira reunião de alto nível para tentar estabelecer a relação entre felicidade e bem estar. O primeiro relatório - World Happiness Report - foi publicado em 2013 Uma das principais conclusões deste relatório é que a felicidade traz uma série de benefícios. Não há dúvidas de que as pessoas felizes vivem mais e melhor, sendo também mais produtivas.

Ainda que a definição ampla de felicidade não seja determinada, principalmente pelas suas implicações inclusive filosóficas, sendo atividade não trivial, importa ressaltar que, na Ciência Econômica, há o reconhecimento oficial de que o bem estar não se esgota no consumo. Sabe-se que a felicidade é uma aspiração de cada ser humano, sendo também uma expressão de progresso social. Podemos identificar pelo menos dois significados associados à felicidade: como uma emoção ou como uma satisfação.

Na economia, técnicas de survey são utilizadas para conhecer o nível de felicidade das pessoas. Podemos ter a situação de pessoas extremamente afluentes com um grau de felicidade baixo no sentido emocional e pessoas em condições materiais precárias com elevado sentimento de felicidade no sentido emocional. Estas dimensões são igualmente importantes na avaliação do bem estar das nações dentro da Economia. De que forma as políticas públicas devem ser norteadas a fim de incorporar esta realidade? E as doenças mentais, tão frequentes no mundo desenvolvido, como podem ser incorporadas na tomada de decisão pelos formuladores de políticas? E como a literatura expressa e modifica esta realidade?

Analisaremos os principais resultados do World Happiness Report, da ONU de 2013, com a perspectiva focada na questão: Num processo inovador, Como podem as políticas publicas incorporar a literatura como meio de enfrentar os principais problemas e conclusões apontados pelo relatório , a saber:

- As doenças mentais são destacadas como o principal fator de infelicidade, entretanto, são amplamente ignoradas pelos formuladores de políticas.

- Os aspectos positivos da felicidade como bem estar são destacados e suas consequências econômicas derivadas.

- A felicidade como consequência dos valores, o que nos leva a levantar bases filosóficas que respaldam a felicidade e o bem estar.

- De que forma as políticas publicas podem usar o bem estar/ felicidade como objetivo de política?

- Qual a relação entre o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU e medidas de felicidade?

Importa analisar e refletir como a felicidade na literatura e na Economia podem convergir para uma plataforma comum de diálogo e de efeitos retroalimentadores com o fim de apontar caminhos capazes de incorporar a felicidade como objetivo de política central para os governos.


Maria Bernadete Gomes Pereira Sarmiento Guttierrez (Economista–Ipea)



A felicidade se promete?

A procura pelo religioso talvez seja motivada por um desejo incontido de felicidade.
Das muitas possíveis formas de entendimento do fenômeno religioso, a vontade de integração com o invisível, com a natureza encantada por deuses amorosos ou perversos, com as fantasias pastoris de um paraíso terreal, das alegorias transcendentes do universo humano, sem sofrimentos e necessidades, enfim, da vida eterna, jovial e saudável, parecem todas elas afirmar o sentimento de projeção que a vida feliz sugere. Mesmo que o impulso de felicidade possa surgir como algo quase impossível de plena realização. A disciplina moral e física exigida pela ascese, a renúncia desejada à vida mundana, a construção do artifício teológico como base para a compreensão do que muitas vezes é mesmo inexplicável, tudo isso contribui para a complexa pretensão de felicidade.

Notadamente as grandes religiões monoteístas – que de uma forma ou de outra acabaram por afetar todo o argumento sobre o assunto – ensinam que a felicidade é um projeto transcendente, para além da vida que conhecemos. A experiência religiosa é assim um duro conjunto de regras morais, que ajustam o valor e a conduta a partir da ideia pouco precisa da existência após a morte e do exemplo sempre difícil de alcançar de seus avatares.

Então, o ser feliz para os homens é o desejo e a projeção de felicidade em outra vida pretendida; é também o cumprimento muitas vezes sacrificioso de procedimentos que o fiel deve obedecer em nome da redenção final, da elevação dos justos e da queda dos danados. A felicidade, vista através das grossas colunas de templos antigos, exige empenho e regra.

Mas ser feliz não deveria ser tão difícil. A promessa de felicidade parece ocupar o discurso central de religiões ao longo da história, mesmo que este não seja o objeto confessado de seu interesse. Então por que se justificariam os pesados sacrifícios, frequentemente contraditórios de uma vida feliz?

O estudo que está em andamento pretende investigar como em algumas religiões tradicionais, politeístas, animistas e com forte amparo no recurso mitológico, a ideia de felicidade é percebida. Em particular, o tratamento de caso da religião yorubá permite bom exemplo desta relação do homem com o fenômeno religioso, sem qualquer concessão à tristeza ou à frustração dos desejos mundanos da felicidade.

Rogério Athayde (Escritor)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Felicidade se determina?



A felicidade, como pressuposto da existência do homem e finalidade do Estado, antevista por Aristóteles nas linhas preliminares da Política, adquire especial dimensão no ambiente do movimento constitucionalista decorrente do ideário e das revoluções liberais burguesas dos séculos XVII/XVIII, que antecederam ao processo de consolidação do Estado de Direito.

O projeto de construção de um novo modelo de organização da sociedade e do Estado, em oposição ao absolutismo estatal e fundada em valores do individualismo liberal, tendo por alicerce a liberdade e a igualdade jurídica formais, é enriquecido pela incorporação das reflexões sobre a busca da felicidade nos debates filosófico- jurídicos do período.
Em simultâneo, entendida como princípio e direito fundamental da pessoa humana, as construções teóricas do período são reavivadas por John Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, numa concepção antecipatória do direito do ser humano à busca da felicidade e, como tal, objeto de (futura) tutela estatal.

As revoluções liberais da época- Revolução Inglesa/ Americana /Francesa-, inspiradas nos valores libertários e igualitários reverberados por Adam Ferguson, Rousseau, Montesquieu, Siéyes, Beccaria, entre outros, e suas respectivas concepções de felicidade, tiveram por legado uma riquíssima herança documental manifesta nos textos do Bill of Rights (1689), da Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

Em tais documentos, antecipatórios das primeiras constituições escritas, a concepção de felicidade, como fundamento da liberdade do homem introduzida por Locke, é estabelecida de modo expresso ou implícito e associada aos compromissos de Estado, i.e., do Estado de Direito.

A constitucionalização e enfática defesa da felicidade como direito fundamental da pessoa humana é corroborada por George Mason, Thomas Jefferson e outros nomes pilares do constitucionalismo norte- americano, na Declaração de Direitos da Virgínia, Declaração de Independência e na Constituição dos EUA de 1787 na assertiva “todos os homens são criados iguais e foram dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis , que entre estes estão  a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.

Antes, Jefferson já declarava “um direito que a Natureza conferira a todos os homens (...) de estabelecer novas sociedades, segundo leis e regulamentos que lhe parecessem mais apropriados para promover a felicidade pública”

Visível o processo de construção teórica de uma “felicidade pública”, salientada por Hannah Arendt em “A Busca da Felicidade” (cap. 3, Da Revolução), e percebida como “uma virtuosa e inabalável vinculação a uma Constituição livre”, assecuratória dos direitos civis e liberdades individuais, segundo Joseph Warren.
Impõe-se a compreensão do Estado como principal instrumento jurídico para promover a felicidade da sociedade, sobreposta à felicidade individual, “o único objetivo legítimo do bom governo, segundo Jefferson”. A busca da felicidade individual seria favorecida e objeto da inevitável tutela estatal.

São evidentes as dificuldades teóricas de se estabelecer uma margem de precisão sobre a concepção de felicidade privada/ felicidade pública, da confusão de preceitos sobre bem-estar pessoal, das distintas percepções de felicidade individual e a essência da felicidade pública preconizadas na literatura político-jurídica da modernidade européia e do século XIX

A liberdade e a felicidade como preceitos da condição humana e finalidade do Estado, inviabilizada no âmbito do absolutismo estatal em face da total ausência de garantias jurídicas do indivíduo, são contestadas no ideário marxista por seu excessivo formalismo e alheamento a realidade material de uma sociedade de classes.

A concepção de felicidade liberal burguesa é objeto de igual enfrentamento na literatura anarquista do século XIX e igualmente considerada inviável numa sociedade de classes alicerçada na glorificação do direito individual de propriedade e preeminência do Estado para a sua concretização; Kropotkin, um dos seus principais teóricos, afirma que a felicidade de cada um está individualmente ligada à felicidade dos que o rodeiam. Para Bakunin, a realização da felicidade de cada indivíduo que vive em sociedade, considerada a grande meta da humanidade e da História implica em não se deixar cair na escravizadora ficção do bem comum representada pelo Estado.

Esvaziado nas sociedades contemporâneas, o debate sobre a essência da felicidade encontra ressonância jurídica com o movimento de positivação do direito à busca da felicidade, presente em variados  ordenamentos constitucionais.As  Constituições  da França, Japão, Butão e Coréia do Sul  são representativas de alguns ordenamentos constitucionais que, de modo expresso, reconhecem o direito constitucional à busca da felicidade .

No âmbito do Estado Democrático de Direito brasileiro, é objeto de atenção, polêmicas e eventual descrédito o atual processo legislativo da Proposta de Emenda à Constituição  ( PEC)  nª 19/2010,  pleiteada pelo Senador Cristóvão Buarque.  Tal proposta altera o artigo 6º da vigente Constituição Federal “para incluir o direito à busca da Felicidade por cada indivíduo e pela sociedade, mediante a dotação pelo Estado e pela própria sociedade das adequadas condições de exercício desse direito”, conhecida como PEC da Felicidade.

Nosso objetivo é amadurecer esses apontamentos sobre a felicidade, como propósito da existência humana e das construções teóricas sobre a possibilidade de sua determinação (?) pelo Estado uma perspectiva político-jurídica.



Magna Corrêa de Lima Duarte (Socióloga, advogada e professora UCM/UNESA)








quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A felicidade se escreve? Porque “A felicidade é a grande conquista que fazemos contra o destino que nos é imposto” (A. Camus)

Existe uma grande dificuldade em reconhecermos e abordarmos as imagens de felicidade, ou melhor, de busca de felicidade na literatura de forma geral. Embora a arte não tenha abandonado o tema, raras obras de pesquisa acadêmica se arriscaram em torno de sua discussão. O fato é que, ao longo dos últimos dois séculos, assiste-se a um processo de desvalorização do debate no campo das ciências artísticas, inversamente proporcional a uma valorização crescente do tema nas demais áreas da sociedade, como a comunicação, o marketing, além de outras áreas que vem crescendo, justamente, com estudos voltados para a investigação da importância da felicidade na sociedade, como a neurociência e a economia.
      
O século XIX, de Hegel e Schopenhauer, vai desprezar a felicidade, fazendo dela uma imagem essencialmente negativa. Sabemos, também, que boa parte do coro dos grandes poetas e artistas do século XIX e XX  cantou a melancolia, o pessimismo e o tédio, reforçando a concepção de felicidade como apanágio de uma burguesia cada vez mais ciosa de seus pequenos e mesquinhos prazeres privados, associando a preocupação com a felicidade ao egoísmo, aos espíritos terra a terra e à burrice.
      
Não resta dúvida de que o século XX foi o das grandes frustrações em tentativas de instauração de felicidade de Estado, fundadas no igualitarismo, em várias partes do mundo. Maio de 68 marcou o grande fracasso da felicidade baseada no desenvolvimento econômico. Nos anos 1980, o “Mercado da felicidade” se concretizou como um dos maiores setores econômicos; a temática virou uma obrigação, que tomou de forma avassaladora a sociedade, num modelo neoliberal, em que os tristes, os depressivos, os melancólicos foram cada vez mais excluídos, assim com os loucos, os velhos e todos que pudessem perturbar a sociedade do “seja feliz, mostre-se um vencedor”.
      
Compreende-se que, na atualidade, para muitos intelectuais, cresça o ceticismo em relação a um enfoque da felicidade, em qualquer instância, como tema de estudos literários e artísticos, e que a questão acadêmica “maior” se transforme em: como sobreviver ao que o filósofo Pascal Bruckner chama de “despotismo da felicidade”, responsável, segundo ele, pela destruição da própria possibilidade de felicidade?
      
Como vemos, a abordagem do assunto envolve navegação em águas arriscadas. Se não há muitos escritores contemporâneos que se aventuram numa tematização clara e frontal do tema, isso não significa, que ele tenha desaparecido ou perdido importância. Sua retração e o seu sequestro pelas áreas das ciências, ditas exatas, também é um sintoma que merece ser discutido. Afinal, como nos ensina G. Minois, a ideia de felicidade revela valores sociais num momento preciso da história.
      
Interessa-me pensar a questão nas literaturas de língua portuguesa, evidenciando alguns caminhos que tenho explorado nos últimos anos, dentre os quais destaco: em que medida o tema é relevante para as literaturas africanas de L. P.? Que figurações do tema tem sobressaído nas obras estudadas?  É possível traçar um diálogo entre as demais literaturas de língua portuguesa, relevando uma ideia de comunidades imaginárias? 

Maria Teresa Salgado (Faculdade de Letras - UFRJ)







sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A felicidade se ensina? ou Felicidade crítica contra racionalismo instrumental. A necessidade de um critério eudemônico de combate no século XXI

No âmbito da vida acadêmica contemporânea, é um lugar comum desqualificar a felicidade e negar que ela possa ser um objeto consistente de indagações filosóficas: destarte, de dois séculos para cá, o acesso à idade adulta da razão em sua dimensão crítica teria correspondido a uma empreitada inexorável e definitiva de desencantamento maciço da reflexão especulativa, deixando a felicidade cair na rede dos tópicos "leigos", fadados à falta de seriedade conceitual e à ditadura das opiniões individuais. Não é somente que, em nossas sociedades liberais, a felicidade de cada um sendo da conta de cada um, qualquer questionamento de tal aspecto privado e privativo tenha se tornado, de fato, suspeito de autoritarismo reacionário; é também, e talvez sobretudo, que a filosofia atual desconfia que nada haja de importante e/ou de objetivo a ser articulado no que tange à felicidade, salvo para quem quiser correr o risco de abrir a Caixa de "Pandoxa", i.e., o risco de deixar a infinidade das opiniões particulares invadir o debate público e tomar conta do discurso "sério" (entender: conceitual) sobre a vida em comum, o que, afinal, desembocaria em uma profusão anárquica de "etiquetas" (= éticas pequenas) contraditoriamente normativas.

Tamanha relutância filosófica em refletir a felicidade, e em outorgar a esta qualquer papel além de meramente individual, ou seja, pré-filosófico, seria, portanto, algum tipo de prova de seriedade teórica, o preço a ser pago para assumir a postura admissível que cabe a uma razão adulta, ao evitar qualquer possibilidade de contaminação pelo entusiasmo e a superstição, eternos adversários da modernidade. Vale observar que a consequência deste quietismo acadêmico em relação à felicidade tem sido a captura deste tema por filosofias populistas e/ou demagógicas, geralmente forjadas para fins bem lucrativos: manuais de autoajuda, seitas, gurus, etc. Daí que se possa temer que, a persistirem em abrir mão da reflexão sobre a felicidade, os filósofos, longe de desfrutarem a conclusão positiva da luta outrora vitoriosa contra o obscurantismo clássico, irão apenas endossar sua derrota cotidiana na luta contra o obscurantismo contemporâneo, ao confundirem a tranquilidade relativa que reina nas torres de marfim acadêmicas com o estado real do campo de batalha das ideias democráticas... Naquelas torres, a razão institucional reina; deste campo de batalha, a razão desertou, e vem tentando disfarçar tal deserção, fazendo-a de soberba racional; ora, a meu parecer, a inaptidão da filosofia de hoje a proferir algum discurso sobre a felicidade não remete a um diagnóstico, e sim a um sintoma: seu isolamento solipsista, sua derrota social. Aqui, tratar-se-á de tentar resgatar o valor filosófico da felicidade; primeiro, salientando que durante 2.000 anos, tanto no contexto antigo (eudemonismo grego-romano) quanto no contexto medieval (providencialismo), a reflexão filosófica nutriu um interesse primordial por tal temática; segundo, recordando que, longe de desaparecer do horizonte da modernidade, a felicidade tem sido o alicerce, amiúde despercebido, porém, constante e estruturante, dos projetos filosófico-políticos elaborados desde o séc.XVII (contratualismo, liberalismo, utilitarismo, socialismo, etc.); enfim, mostrando que nossa postura contemporânea no que diz respeito à felicidade, i.e., à "timidez" que sentimos diante desse tema, repete a postura de outras épocas do pensamento, marcadas por incertezas e inquietudes mui semelhantes às nossas.

Cabe perguntar: e se ensinar a felicidade, em vez de ser um projeto tipicamente utópico e/ou autoritário, fosse o último recurso que nos resta neste nosso período em que os interesses da razão e os interesses humanos aparentam ter definitivamente divorciado? 


Baptiste Grasset (UNIRIO)